terça-feira, 24 de abril de 2012

Os caminhos desapareceram da alma humana
















Caminho: faixa de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada destingue-se do caminho, não só por ser percorrida de automóvel, mas também por ser uma simples linha ligando um ponto a outro. A estrada não tem em si própria qualquer sentido; só têm sentido os dois pontos que ela liga. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho é em si próprio dotado de um sentido e convida-nos a uma pausa. A estrada é uma desvalorização  triunfal do espaço que hoje não passa de um entrave aos movimentos do homem, uma perda de tempo.
Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e extrair  disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.

Milan Kundera, in "A Imortalidade"
imagem- c o

domingo, 22 de abril de 2012

Discernimento

















Hoje
Era capaz de vender por meia bagatela,
Milhões de coisas sérias
Que quiseram ensinar-me.

É em dias assim que se acende
A justeza dos meus devaneios,
Alavanca da coragem
Com que me ergo,
Depois de nas coisas sérias tropeçar,
E com elas me enganar.

Fátima Marinho, in "Ama-me, sem me suportares"
imagem - c o

Não existem pessoas totalmente ocas



















Nunca encontrei uma pessoa oca. Nunca encontrei uma vida
sem significado quando se procura realmente o seu significado.
É esse o perigo de dizer que não procuramos, porque foi assim
que chegámos ao ponto em que sentimos que a vida não tinha
qualquer significado. Bem vê, nós repudiámos tantas formas de
 terapia. Quer dizer, tantos de nós repudiam actualmente a
filosofia, a religião ou qualquer outro padrão que nos mantinha
coesos anteriormente. Repudiámos tudo. Até repudiámos a
terapia da arte. Por isso não nos restou realmente mais que
olhar para dentro, e os que o fazem descobrem que toda a vida
tem significado, porque a vida tem significado. Fomos
seriamente prejudicados por pessoas que disseram que a vida
era irracional e de qualquer modo não significava nada. Mas
assim que começamos a olhar, descobrimos o padrão e
descobrimos a pessoa. Nunca encontrei aquilo a que se poderia
chamar, uma pessoa totalmente oca.

Anais Nin
imagem - c o

domingo, 15 de abril de 2012

o firmamento e a alma




























Vem, Jessica, vê como o firmamento
se encontra adornado com esferas de ouro resplandecente
onde não há a mais pequena estrela que
no seu périplo não cante como um anjo
acompanhado pelo coro dos querubins de jovens olhos.
Tal harmonia existe no seio da nossa alma.
Apenas se as obscuras vestes da podridão
a envolverem de forma grosseira, não a conseguiremos ouvi-la.


Shakespeare, in "O Mercador de Veneza"
imagem - Matisse

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Passagem


















Há um encontro na passagem da noite para o dia,
na nascente da claridade do céu e do mar

- correnteza margem foz poente -

e silêncios de ternura adornam o vento.

Sandra Costa, in "Sob a luz do mar"
imagem - c o

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Gesto amar























Estendo os dedos à procura do vento das tuas mãos.
À tua espera, folheio as janelas no rasto da Lua.

E, silenciosamente, entrego-te o mar...



Sandra Costa, in "Sob a luz do mar" (excerto)
imagem - co

A minha praia

















Ergo à minha volta, pedra a pedra,
Um contorno de maresia...

- A minha praia.





Sandra Costa, in "Sob a luz do mar"
imagem - co

sábado, 7 de abril de 2012

Canção de amor



















Como hei-de segurar a minha alma
para que não toque na tua? Como hei-de
levá-la acima de ti, até outras coisas?
Ah, como gostaria de levá-la
até um sitio perdido na escuridão
até um lugar estranho e silencioso
que não se agita, quando o teu coração treme.
Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma só nota.
A que instrumento estamos atados?
E que violinista nos tem em suas mãos?
Oh doce canção.

Ranier Maria Rilke
Imagem - c o