quarta-feira, 22 de maio de 2013

a flauta mágica























O amolador aparecia sempre num dia chuvoso. Ninguém sabia de onde...
De aspecto mal cuidado e barba por fazer, caminhava ao lado da velha bicicleta, que segurava com uma mão, para com a outra tocar a flauta. A flauta mágica!
Caminhava com dignidade e descrição. As mesmas com que executava  o seu trabalho. 
Percorria todo o povoado inundando-o de musica suave e desaparecia misteriosamente...

Actualmente o amolador desloca-se numa viatura (carrinha comercial), que debita o som mágico através de um aparelho audio.
Apenas a magia do som sobrevive...
Como dizem os cubanos: "El son es lo màs sublime".

c o


avó Agostinha























Não sei se a cultura ajuda. Preferiria
a qualquer obra de Bach
que a música ambulante do amolador
pudesse de novo passar na infância,
na infância breve de estarmos ambos vivos,
sentados na varanda. À espera de dias
iguais, sob a alta sombra dos pinheiros.

Manuel de Freitas, in "Genealogia" (excerto)
imagem - c o

qualquer coisa





Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Mia Couto 
imagem - Oleg Obukhov 


segunda-feira, 20 de maio de 2013

tu



















Enlouqueces-me, maravilhas-me, atrapalhas-me apaixonas-me cegas-me
confundes-me. Tu inspiras-me.
Tu tu tu tu tu tu tu tu tu...

Quero tanto de ti e tão próximo que anseio que fosses o ar, o chão,
as paredes, tudo.

Que tudo o que tocasse fossem os teus braços.
Que tudo o que sentisse fossem os teus lábios.

Como quando fecho os olhos e tudo o que não vejo és tu.
Como quando não durmo e tudo o que sonho és tu.

Contigo não consigo respirar. Sem ti não consigo viver.

Quero estar tão dentro de ti que nem a luz do dia exista para mim.
Quero abraçar-te tanto que todo o mundo colapse e desapareça
num pequeno ponto entre os meus braços.

Toca-me com as tuas mãos.
faz-me desaparecer com a tua pele.
Sufoca-me na tua língua.
Arrasta-me pelo ar com o teu perfume.
Mata-me de vez.

Tu
se fosses chuva, do céu só cairiam pérolas...
E até o chão gritaria de prazer.

Maria Teresa Horta
imagem - c o

quarta-feira, 15 de maio de 2013

sandálias

















Que soberbos são teus pés nas sandálias,
ó filha de príncipe.
A curva das tuas coxas é como um colar,
obra das mãos de um artista.
Abre-se o teu umbigo como uma taça redonda,
em teu ventre, montículo de trigo
cercado de lírios.

Cântico dos cânticos de Salomão, Poema Quarto (excerto)
Herberto Helder, in "Poesia Toda" 
imagem - c o

milagre interior

















(...)
Eu desejaria levantar-me levemente
sobre as paisagens, que se enchem de chuva apaixonada.
Desejaria estar em cima, no meio da alegria,
e abrir os dedos tão devagar que ninguém sentisse
a melancolia da minha inocência.
Tanto desejaria ser destruído por um milagre interior.

Herberto Helder
imagem - c o

terça-feira, 14 de maio de 2013

Líbano


















Arrebataste meu coração, minha irmã (1), minha amada,
arrebataste meu coração,
com um só dos teus olhares,
com uma única pérola do teu colar.
Magnífico é o teu amor, minha irmã, minha amada.
E o cheiro dos teus perfumes, melhor
que todos os bálsamos.
Teus lábios, ó minha amada, destilam mel virgem.
Leite e mel na tua língua.
O cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do Líbano.



Cântico dos cânticos de Salomão, Poema Terceiro (excerto)
 Herberto Helder, in "Poesia Toda"
imagem - c o

(1) palavra sem relação de consanguinidade


óculos de sol

a proteção
dos olhos
e do olhar
não protege
os olhos
e o olhar
de quem olha
profundamente
os afetos
do olhar

domingo, 12 de maio de 2013

ternura




















Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei á sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exagero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
Estático da aurora.

Vinicius de Moraes
imagem - c o

quinta-feira, 9 de maio de 2013

veante mis ojos...

























Veante mis ojos 
muera me yo luego

Cantarilho español
imagem - c o

paz













É nos momentos
que antecedem
o nascimento
do sol,

nos momentos
em que
tudo está por fazer,

nos momentos
em que
nada nasceu,

nos momentos
em que
nada morreu

é que a magia
tem textura.

num tufo de erva
que dorme
numa pedra
que sorri
numa ave
que desperta,
sonolenta,
uma onda
que tomba,
displicente

os campos,
o mar,
as ruas,
ainda dormem

felizmente


imagem - o meu  filhote :-)

quarta-feira, 8 de maio de 2013

intimidade


















Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador
se fundam os lábios e o coração se rasgue de amor...

Anna Akhmatóva (excerto)
imagem - c o