quinta-feira, 14 de agosto de 2014

a um ausente














Tenho razão para sentir saudade,
tenho razão para te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo, sem consulta, sem provocação,
até ao limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo as nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave,
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar,
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza,
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.


Carlos Drummond de Andrade

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